- Gente, estamos aqui porque recebemos a denúncia por parte dos vizinhos dessa casa sobre os maus tratos que esse cãozinho tão meiogo recebe de sua dona. Né fofinho? - diz a apresentadora olhando para a camera com uma mão segurando o microfone, e a outra na cabecinha de osso e pelo falho. Ela ainda completa: "Olha, vejam só esse cachorrinho perto de mim gente!..." - e, com uma emoção que não cabe no infinito, é possível avistar lágrimas nos olhos sensíveis dessa apresentadora. Pelo menos, é o que deve pensar a maioria das pessoas fiéis ao programa.
Então, depois de recuperar-se de tamanha emoção, em um ímpeto repleto de senso de justiça, ela respira fundo, olha fixamente para a camera, depois vira levemente o pescoço para baixo avistando o tamanho da injustiça refletida na pele do cão. Continua passando a mão nele e acrescenta: "Agora vamos falar com a pessoa que está fazendo isso com você. Nós da Rede TV vamos ver o que pode ser feito". E, a partir daí, ela já não está mais com a cabeça abaixada e com a mão acariciando o animal porque depois de respirar fundo novamente, e olhar profundamente para a camera, continua: "Está na hora de fazermos justiça gente!". E toca a campainha.
O portão enferrujado é aberto lentamente por uma mulher acabada. Então, Luisa Mel se apresenta:
- Boa tarde minha senhora. Nós somos do programa Late-Show e viemos aqui porque recebemos uma denúncia dos seus vizinhos que estão indignados com os mãos tratos que seus cachorros estão recebendo da senhora.
A mulher começa a chorar...
- O que foi? A senhora está arrependida? Por que a senhora tem cachorros e não os alimenta? -continua Luisa Mel.
Soluçando, a mulher responde que não deseja mal a seus cães, e muito menos que estejam passando fome, mas alega que toda sua família encontra-se desempregada e devido a isso não podem comprar comida para os animais.
- Então a senhora compra comida para vocês, mas não para os cãezinhos? Será que podemos entrar?
A mulher acena positivamente com a cabeça baixa deixando-os entrar...
E, mais três cachorros em pele e osso aparecem e acompanham a equipe, que não economiza em mostrar os aspectos mais acabados da casa, das crianças sujas e dos animais.
E a mulher continua chorando!
Luisa Mel, consumida por um gesto de solidariedade a abraça e diz:
- A senhora está arrependida mesmo. Mas não fique assim. Nós viemos aqui para denunciá-la, mas aí encontramos o que estamos vendo. Sei que a senhora não é uma má pessoa e que essa situação independe de você. Não é mesmo?
Simultâneo ao diálogo, cenas da dispensa vazia são mostradas acompanhadas de um fundo musical triste.
Dona "Maria" responde soluçando:
- Estamos passando fome. Por isso não demos de comer aos cachorros, e também aos meus filhos (três crianças de nariz escorrendo sentadas no sofá rasgado). Quero dar aos cães para uma pessoa que possa cuidar.
Pausa. A sinfonia da agonia prevalece agora no ar. A camera percorre a miséria daquela casa refletida nas pessoas e nos animais.
Luisa Mel pede para os espectadores ajudarem a família de dona "Maria" com doações através do telefone que aparece na tela. E o Late-Show segue com seus blocos (aliás, o programa não é de todod inútil. Uma vez assisti uma passagem interessante sobre o sono dos cães. Z,Z,z,z,z...)
Essa historinha é apenas um exemplo marcante do perfil de programas oferecidos por essa emissora. A Rede TV possui uma audiência alta e segue a tendência de crescimento forncendo o que existe de mais hipócrita. Estimula a ignorância e o maniqueísmo. Oferece um entretenimento que independe de moral e ética, e assim, reflete o mais podre de nossa sociedade: a farsa, a tendência a idolatrar o tosco e superficial, reproduzindo muito bem o "pão e circo" tão marcante no Brasil. "Pão e circo", nada mais. O mesmo "pão e circo" que nutre os hábitos da maioria da população que vive sob exclusão em pleno século XXI.
Só deixo a pergunta: quantos espectadores famintos deixarão seus cãezinhos passando fome para um dia receberem a ilustre visita de Luisa Mel em suas humildes residências? E quantos serão solidários a essa manifestação de sensibilidade tão comovente?